Leer Iberoamerica Lee: um seminário contra a distopia do presenteJosé Castilho Marques Neto18-24 minutesMe cabe a difícil missão de cumprir a última exposição do nosso Seminário Leer Iberoamerica Lee e superar minimamente uma dupla dificuldade: a primeira delas é falar por último após exposições tão densas e significativas dos nossos palestrantes convidados; a segunda é o desafio em ousar falar de novos rumos em tempos tão angustiantes para a maior parte da população do nosso planeta e de nossa região ibero-americana. Talvez temerariamente, aceitei o desafio do tema proposto pelas minhas queridas amigas e companheiras dessa jornada, Inés Miret e Dolores Prades, e dedico a elas, e a Manuel Gil e a toda a equipe da Neturity, que construiu este espaço de diálogo e pensamento, esta palestra extraída da reflexão e da sensibilidade de quem nos últimos 40 anos vivenciou plenamente o fascínio e a mutação vertiginosa de uma era, transformando junto com ela o aparentemente imutável mundo do livro, da escritura, da leitura e das bibliotecas.Novos rumosO que significa falar de novos rumos em tempos complexos e difíceis para a humanidade, onde horizontes utópicos e moventes de nossa vontade de viver e criar são substituídos pela pregação diuturna de distopias apocalípticas em que um novo conceito de verdade glorifica o que é falso, opinativo, irracional, desqualificador da razão, fomentador do ódio ao trabalho intelectual e artístico? A chamada pós-verdade que dispensa método científico, provas factuais irrefutáveis e os substituem por opiniões de próceres do poder da ocasião é o retrato legítimo do cinismo que costuma acompanhar tempos como o que vivenciamos hoje.É necessário qualificar este tempo e, principalmente, compreender o que ele está causando na vida das pessoas. O que esperar de um tempo de degradação econômica neoliberal que empobrece vertiginosamente famílias, comunidades e nações, trazendo junto a degradação política que nos lembra os sombrios períodos do surgimento do protofascismo decorrente da 1ª. Guerra Mundial e que acabou por criar a monstruosidade do nazi-fascismo que aterrorizou a humanidade no século passado? E que ainda faz ascender hoje, em pleno século da informação, da conectividade e do conhecimento, hordas militantes de ultradireita ao poder de Estado democrático, possibilidade que pensávamos jamais voltariam à tona no que ainda chamamos de civilização?Nosso tempo passa por fatos e decisões tão densas, duras e estratégicas da sociedade que essas questões, que até há poucos anos atrás poderiam ser atribuídas a um discurso esquerdista, hoje são abertamente assumidas por intelectuais de grande respeitabilidade pública e insuspeitos de serem anticapitalistas, como o Prêmio Nobel de Economia de 2001, o economista Joseph Stiglitz que em recente estudo publicado em abril deste ano pelo Roosevelt Institut dos EUA dispara no coração do sistema econômico mundial:• “A história não tem sido gentil com o neoliberalismo, esse tipo de ideia baseada na noção fundamentalista de que os mercados se auto corrigem, alocam recursos eficientemente e servem bem ao interesse público. Aprender a lição de que o neoliberalismo sempre foi uma doutrina política que serve a interesses específicos pode ser o lado bom na nuvem que agora paira sobre a economia global.”• “O experimento neoliberal — impostos mais baixos para os ricos, desregulamentação dos mercados de trabalho e de produtos, financeirização e globalização — tem sido um fracasso espetacular. O crescimento é menor do que era no quarto de século após a Segunda Guerra Mundial, e a maior parte acumulou-se no topo da escala de renda. Depois de décadas de renda estagnada ou mesmo em queda para aqueles abaixo dos mais ricos, o neoliberalismo deve ser declarado morto e enterrado.”As consequências políticas da aventura neoliberal do nosso tempo podem ser observadas na reflexão da filosofia política. Em recente palestra, a filósofa brasileira Marilena Chauí, da Universidade de São Paulo, classificou o neoliberalismo como uma nova forma de totalitarismo. Não cabe aqui uma explanação ampla daquela exposição, mas buscando uma síntese de suas conclusões, Chauí postula que o neoliberalismo carrega no seu coração o núcleo do totalitarismo ao recusar as especificidades de cada atividade humana e social. No pensamento neoliberal tudo passa a ser operado pelo princípio de Organização e não de Governo, este prenhe de historicidade, aquele prenhe de efemeridade. Organizada a circulação de capitais pela desnacionalização da economia, investe-se no descarte da ideia clássica de Nação e seus instrumentos tradicionais de dominação. Globalizada, sujeita às operações monetarizadas globalmente, tudo é regido pelo princípio da Administração, por operações padronizadas. Ao vincular na gestão da coisa pública o que é efêmero, ou seja, operações localizadas e temporais, perde-se a historicidade, ou seja, a gerência do Estado pautada pelo acúmulo da cultura política institucional visando o bem do comum. A ideia de uma comunidade de sujeitos, fundamento da polis e das nações, é substituída pela retomada do indivíduo como empresário de si mesmo, pautado por conceitos de meritocracia, da ascensão pelo esforço pessoal: o homem UBER.As consequências políticas e culturais do “experimento neoliberal”, como denomina Stiglitz, persistem e são profundas. Ao atentar contra a economia voltada ao desenvolvimento das nações e privilegiar o indivíduo; ao substituir a política pela ideia do gestor pautado pela previsível lógica administrativa, este perverso “experimento” privatiza o social, suprime direitos, instaura a judicialização da política, e cria uma outra dimensão na cultura, como lembra Chauí citando David Harvey: vivemos na compressão do espaço plano da TELA, sem território. O espaço só tem uma dimensão – o AQUI; e o tempo se reduz ao AGORA.O que podemos falar de novos rumos neste contexto? Como especular com o futuro se o tempo imperativo é o agora, no momento fugaz de um texto de 140 caracteres?Falar sobre o novo é também refletir o que esse tempo nos faz perder. E a principal perda, em minha opinião, é o sentido de coletividade, da polis enquanto comunidade de sujeitos.A perda da comunidade de sujeitos em favor do indivíduo meritocrático passa também pela perda da palavra, da narrativa, da falsa comunicabilidade e capilaridade das palavras entrecortadas pela rapidez e efemeridade do ato da escrita e da leitura absorvidas, domesticadas pela ideologia neoliberal. A historicidade do ato de ler o mundo antes de ler a palavra, como refletiu Paulo Freire e formou gerações, se fragilizou, e se corre o risco de entrarmos num perigoso ciclo de empobrecimento da reflexão implícita deste ato libertador que pressupõe ler o mundo e a palavra em contextos amplos de liberdade e exercício ilimitado do pensamento, ambos pautados no território da infinita diversidade cultural e artística de nossos povos e na afirmação de identidades.Como nos adverte o sociólogo português Boaventura de Souza Santos, “o tempo em que emergem a automação, a robótica e a inteligência artificial é o mesmo em que declinam as ideias de igualdade, justiça e direitos. As distopias batem à porta, é preciso agir.” (in: Blog Outras Palavras, Brasil, 13/02/2019)É verdade que linhas de pensamento crítico, como o do jornalista, editor e crítico espanhol Constantino Bértolo, já apontavam a dissolução da ideia de comunidade como algo intrínseco ao desenvolvimento capitalista, com consequências na cultura e na leitura em particular: “A cultura consistirá em saber consumir. O mercado capitalista supõe a dissolução da ideia de comunidade, a dissolução da ideia de progresso e a substituição desta pela ideia de desenvolvimento. O desaparecimento da ideia do bem comum ou sua ardilosa substituição pela ideia de que o único bem comum possível descansa sobre a existência do mercado.” (…) “…a primeira ameaça provém, precisamente, do fato de que, perante o comum uma parte da comunidade se erga como detentora e definidora das palavras da comunidade. (…)Quem monopolizar a sua definição deterá a legitimidade. Saber quem possui o poder sobre as palavras não é muito difícil de descobrir: é aquele que em última instância, pode proibir o seu uso.” Assim discorria Bértolo em uma passagem do seu livro seminal O Banquete dos Notáveis, publicado em 2008, em que parte da sábia premissa do vínculo inexorável entre a escrita e o poder político: “A escrita nasceu, podemos afirmar, ligada ao poder, embora gostemos de pensar que foi criada para dar voz, honra e acolhida à memória.”No entanto, e apesar de tudo que esse tempo perverso procura nos tirar, analisa-lo é também olhar o que se constrói nele.Não nos é difícil olhar essa construção. A vejo agora, olhando todos nós aqui reunidos em torno do tema da formação de leitores e com tantos exemplos e reflexões formadoras desta onda virtuosa pró-humanidade. E sigo pensando que pelas ondas digitais muitos nos assistem em qualquer parte do mundo, como a turma de Parelheiros em São Paulo, a turma da Baixada Literária da Baixada Fluminense, a turma das Bibliotecas do Compaz no Recife, e tantos outros grupos de militantes, como nós, que fazem o trabalho gigante de desconstruir a destruição e erguer novos leitores, críticos, plenos na defesa de seu direito humano à leitura e à literatura. Sim, somos resilientes, somos muitos, e mesmo no silêncio tímido e modesto de cada sala de aula, de cada sarau literário, de cada festival de leitura, de cada biblioteca de acesso público, praticamos cotidianamente a construção de comunidades de sujeitos.É fundamental nos recordarmos, combatendo a insistência pelo esquecimento que enfrentamos no mundo do aqui e do agora, de que a leitura, principalmente a leitura literária, necessariamente reflexiva e dialógica com outros seres humanos, é aliada necessária e inexorável do comum e assim se expressa hoje, e antes, como um ato de resiliência e agregação. O significado da formação de novos leitores em contextos de retrocesso democrático, aí se resignifica enquanto ato político e se insere enquanto defesa das liberdades da autoria, da edição livre e da leitura diversa e includente.Contra as armadilhas do presente que parece apocalíptico e obscurece a possibilidade de um futuro digno de ser chamado de humano, porque a-histórico, recordamos a sabedoria dos conceitos de tempo dos antigos gregos e que certamente nos ajudarão a refletir melhor: chronos, o tempo cronológico em sua constante linearidade, e kayrós, na sua ação oportuna e única no espaço determinado por chronos. Nessa dualidade temporal, kayrós tem a possibilidade de realizar o momento oportuno, o melhor instante no presente, aquele que consegue afastar o caos e alcançar a felicidade, transformando chronos e sua linearidade que parece inexorável. Quantas vezes tivemos e temos a alegria de presenciar este tempo mítico de kayrós ao conseguirmos construir uma biblioteca comunitária e torna-la essencial à vida de uma comunidade inteira? Ou ao consolidarmos ações de leitura efetivas e includentes? Ou ao realizarmos uma conversação agregadora como a deste Seminário? Ou quando, inadvertidamente percebemos os olhos luminosos de um novo leitor?É preciso não esquecer e valorizar o significado desses passos gigantescos e resilientes que milhões de mediadores de leitura realizam no seu cotidiano e que sim, forjam o futuro, os novos rumos, porque novos serão os horizontes daqueles seres humanos que finalmente alcançarão a possibilidade de dialogarem com os instrumentos de apreensão, compreensão e crítica desta sociedade tão avançada no acúmulo de informação e conhecimento e tão desigual na possibilidade do acesso a esse capital intelectual, literário e artístico acumulado. Nos afastemos daquela ideia muito comum entre nós que fazemos trabalhos de “formiguinhas”. Não! Não somos pequenininhos, não somos incrivelmente disciplinados andando sempre em linhas calculadas com objetivos únicos. Somos diversos, somos indisciplinados, somos críticos, somos rebeldes, somos inconformados contra os que exercem a exclusão, somos gigantes que fazem o trabalho fundamental de defender o direito pleno à plena expressão do humano que há em todos nós!Se a palavra é poder e dominação, dominá-la democraticamente enquanto comunidade de sujeitos pode ser também liberdade e chave de todos os direitos humanos já conquistados na história da humanidade. Vejo nossa luta cotidiana para formar leitores por essa perspectiva temporal e pela força que a escritura e a leitura têm na construção de um ser humano que deterá os instrumentos necessários nesta fascinante, perigosa e promissora era da informação e do conhecimento. Não é sem razão que os gestores do caos neoliberal de nosso tempo realizam esforços evidentes em sufocar e tornar menor o trabalho transformador de milhões de mediadores da leitura – escritores, professores, bibliotecários, agentes culturais, livreiros, gestores de programas de leitura, entre tantos – e mediocrizar as ações de educação inclusiva, de programas de formação de mediadores para famílias polivalentes e leitoras, de ações coletivas que priorizam a literatura e as letras. Analisem os orçamentos dos poderes constituídos: o primeiro corte será sempre nas ações que formam leitores!Finalmente, meu último movimento nesta reflexão: se mesmo em situações limítrofes conseguimos seguir agindo e formando seres humanos, que rumos podemos trilhar? Quais os ensinamentos que acumulamos para essa estrada?Se há um retrocesso potente liderado pelo obscurantismo da ignorância, pela imoralidade da exploração perversa da fé popular, e um insulto orquestrado que tenta desmoralizar a inteligência e a razão humana, também é evidente o avanço e as transversalidades virtuosas das ciências, das tecnologias virtuais e das ciências humanas, da multiplicação da literatura, das artes, da afirmação das identidades e territórios e dos saberes tradicionais e populares. Este quadro é um fato e uma disputa. E essa disputa está primordialmente no terreno da política. Não estamos dispensados dela enquanto escritores, mediadores, editores, livreiros, bibliotecários, agentes culturais, professores, entre tantos homens e mulheres do nosso universo literário e artístico.Adquirir a consciência do que é possível fazer e ter a lucidez do que defender e do que transformar nessa luta pela vida e pela altivez da cidadania, é optar pelo entendimento que a nossa trincheira de mediar e formar leitores é também luta política específica mas que não se distancia da luta pelos direitos de todos a uma vida digna em ambiente de plenas liberdades democráticas.Após 14 anos de construção dos Planos Nacionais de Leitura na região ibero-americana, sabemos pelo que lutar. Consolidar os conceitos adquiridos e preservar os avanços, fazendo avançar ainda mais as iniciativas de políticas públicas que formam o último ciclo de Planos Nacionais de Leitura a partir de 2005, o Ano Ibero-americano da Leitura – Ilímita/Vivaleitura, é premissa que considero básica se quisermos escrever o livro desses novos rumos.Escrevemos juntos os alicerces desse ciclo: Estado e Sociedade devem ser corresponsáveis na tarefa de formar leitores; Cultura e Educação são essenciais na abrangência da formação leitora e estratégicos na atração de todos os níveis de atividade humana se quisermos formar nossas crianças e jovens na multiliteracia exigida pelos tempos atuais.Eixos centralizam a formulação e aplicação de programas: democratização do acesso à leitura, com ênfase às bibliotecas de acesso público; formação de qualidade para a fundamental presença de mediadores de leitura; incrementar o valor simbólico da leitura, identifica-la como necessária ao bem estar e desenvolvimento dos sujeitos; desenvolvimento da economia do livro em todas os seus suportes compreendendo aí toda a cadeia – escritor, editor, livreiro, distribuidor e editor.Com redações similares nossos países redigiram seus Planos Nacionais de Leitura e eles são a nossa carta de navegação. Na dureza da disputa com o obscurantismo do retrocesso, é fundamental termos clareza do que é preciso realizar. No Brasil me emociono e me encho de esperança quando percorrendo margens e sertões identifico na brava gente que forma leitores as diretrizes e eixos do nosso PNLL. Ignorado pelo atual governo proto-fascista, apesar da Lei 13.696/2018 que instituiu a Política Nacional de Leitura e Escrita e tornou obrigatória o PNLL, hoje ele vive no cotidiano dos mediadores anônimos e cada vez mais em instituições municipais que têm nele o alicerce e a bússola.Nada melhor para combater o distopia de um mundo que se apresenta negativando o horizonte da utopia e apresenta a apologia do indivíduo e do isolamento como chave para o sucesso, do que uma posição afirmativa que reflete a luta diária de milhões de educadores humanistas formais e informais dos territórios ibero-americanos: Ibero-América Lê! Responder positivamente e com propostas que possam alimentar a resiliência contra exemplos assombrosos de anti-humanidade, é um ato de cidadania e defesa do humanismo que ainda nos resta. Este é o nosso rumo!Encerro com a voz de dois grandes escritores brasileiros. Ambos professores, ambos “gente que gosta de gente”, unidos pela harmonia da literatura em seus territórios tão diversos do agreste nordestino e do planalto paulista.Ariano Suassuna nos deixa a poesia da esperança:“Não sou nem otimista, nem pessimista. Os otimistas são ingênuos, e os pessimistas amargos. Sou um realista esperançoso. Sou um homem da esperança. Sei que é para um futuro muito longínquo. Sonho com o dia em que o sol de deus vai espalhar justiça pelo mundo.”Antonio Candido, formulador da literatura como direito humano, nos deixa a lucidez da ação política:“O que importa não é que os alvos sejam ou não atingíveis concretamente na sua sonhada integridade. O essencial é que nos disponhamos a agir como se pudéssemos alcança-los, porque isso pode impedir ou ao menos atenuar o afloramento do que há de pior em nós e em nossa sociedade.”